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Na mídia: Resolução normativa nº 18/2017 ANTAQ: a recusa do serviço de transporte marítimo pode se


RESUMO: O presente trabalho busca analisar a legitimidade da Antaq em estabelecer direito ao transportador marítimo de recusar o seu serviço fundado na inadimplência comprovada do usuário, confrontando a hipótese prevista na Resolução Normativa nº 18/2017 à Lei nº 10.233/2003, ao Código Civil e à legislação especial de regência (Código Comercial e Decreto nº 116/1967).

PALAVRAS-CHAVE: Transporte marítimo; regulação; recusa; inadimplência comprovada; sobre-estadia de contêiner.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Legitimidade da Antaq para dispor sobre direitos na Resolução Normativa nº 18/2017; 2 Do direito do transportador marítimo previsto na Resolução Normativa nº 18/2017; 3 Da natureza jurídica do transporte marítimo de longo curso; 3.1 Interesse público do serviço de transporte aquaviário; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Assunto que ganhou voz após a edição da Resolução Normativa nº 18/2017 da Antaq é a possibilidade conferida aos transportadores marítimos de recusar o serviço de transporte que lhes for solicitado fundada na hipótese de “inadimplência comprovada do usuário perante o transportador marítimo a ser contratado” (art. 10, V).

Anterior à edição da Resolução Normativa Antaq nº 18/2017, os transportadores marítimos utilizavam-se de expediente similar: o transporte marítimo era, em si, realizado e, diante de uma “pendência financeira” do usuário, o transportador inseria restrição no sistema Siscomex da Receita Federal sob o falsa declaração de “não pagamento de frete ou avaria grossa”. Falsa declaração, na medida em que a “pendência financeira, em sua maior parte, era decorrente de sobre-estadia de contêiner, ou seja, a famigerada demurrage. Com isso, os transportadores marítimos inviabilizavam que a carga fosse entregue senão antes o pagamento da suposta “pendência financeira”.[1]

Agora, com a conduta regrada pela Resolução Normativa nº 18/2017, os transportadores marítimos têm se arvorado nesta redação, recusando deliberadamente o serviço àquele compreendido por “inadimplente comprovado”, seja a que título for, inclusive a sobre-estadia de contêiner.

1 LEGITIMIDADE DA ANTAQ PARA DISPOR SOBRE DIREITOS NA RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 18/2017

O primeiro questionamento que se faz sobre tal conduta é: a Antaq dispõe de legitimidade para estabelecer direitos dessa envergadura?

A Antaq, deveras, demorou para exercer sua função junto ao setor de empresas estrangeiras operante do transporte aquaviário de longo curso. Criada em 2001, por meio da Lei nº 10.233, somente veio deliberar pela Resolução Normativa nº 18/2017 mediante a provocação do Tribunal de Contas da União quando do julgamento do Acórdão TC nº 004.662/2014-8.

Naquela oportunidade, exigiu-se da Antaq um plano de ação para regular a navegação de longo curso nos portos brasileiros, alcançando o registro de armadores estrangeiros, registro de preços de frete, extrafrete e outro, os estudos comparativos de rotas e preços praticados pelo armadores estrangeiros, a normatização de punição para omissões injustificadas de portos, entre outras ações consideradas pertinentes pela Antaq.

O conceito moderno do Estado reclamou a revisão de suas estratégicas intervencionistas e regulatórias, sendo as Agências criadas justamente para suprir o burocrático processo político legislativo. Atribuir poder normativo à Agência é aparelhar o Estado de forma eficiente, editando normas técnicas complementares de caráter geral, “tanto para disciplinar os serviços públicos desestatizados, como para propiciar forte incidência regulatória sobre atividades econômicas da iniciativa privada”. [2]

Partindo dessa premissa, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.386.994/SC, enfrentou uma questão muito próxima, envolvendo a autoridade da Antaq em aplicar multa por infração a obrigação imposta por Resolução, no caso a Resolução nº 858/2007.

Lá, a discussão tinha como pano de fundo a necessidade de se submeter à Antaq a prévia aprovação para a celebração de aditivos que implicassem prorrogação de prazo do contrato de arrendamento. A 2ª Turma do STJ entendeu por unanimidade de votos (5 x 0) que não havia violação à legalidade. E não havia violação porque a própria lei que criou a Antaq (Lei nº 10.233/2001) deu poderes para ela (Resolução nº 858/2007), em si, de editar normas. Fundamentou desta forma compreendendo que as condutas puníveis seriam todas aquelas capazes de configurar, a juízo da autoridade administrativa, infração à lei e aos atos normativos editados pela Antaq, desde que estes não exorbitassem a lei. No julgado do STJ, observou-se, ainda, que a obrigação imposta pela Resolução (Resolução nº 858/2007) guardava absoluta pertinência com a matéria da lei, pois garantia a isonomia, assegurando os direitos dos usuários e fomentando a competição entre os operadores.

Transpondo esse precedente à ótica da Resolução Normativa nº 18/2017, faremos o mesmo exercício interpretativo: as obrigações impostas pela novel Resolução Normativa nº 18/2017 guardam absoluta pertinência com a lei?

Se sim, ficaremos rendidos pela legalidade de se aplicá-la. Caso negativo, ter-se-á margem e espaço para discussão no Judiciário.

2 DO DIREITO DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO PREVISTO NA RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 18/2017

Estabelece o art. 10, V, parágrafo único, da Resolução Normativa nº 18/2017:

Os transportadores marítimos e os agentes intermediários somente poderão recusar o transporte que lhes for solicitado nas seguintes hipóteses: […]

V – inadimplência comprovada do usuário perante o transportador marítimo a ser contratado. Parágrafo único. Fica vedada a recusa do transporte com fulcro nos incisos III e IV do presente artigo no caso de já ter ocorrido a reserva de praça (booking confirmation).

Pergunta-se: o direito estabelecido no art. 10, V, dado pela Resolução Normativa nº 18/2017 guarda absoluta pertinência com a matéria da lei que a criou (Lei nº 10.233/2003)?

Pensamos negativamente. A Lei nº 10.233/2003 estabeleceu, em seu art. 27, IV, a garantia da “isonomia no seu acesso e uso, assegurando os direitos dos usuários”.

Sendo a própria lei que instituiu a Antaq garantidora da isonomia, a igualdade para todos, como admitir uma norma infralegal (e, portanto, hierarquicamente inferior), como no caso a Resolução Normativa nº 18/2017, venha discriminar alguns em detrimentos de outros, indo de contramão aos ditames da lei?

A Antaq, em tese, não disporia de legitimidade para estabelecer direitos aos transportadores marítimos para além da lei, infringindo, via reflexa, os direitos dos usuários.

3 DA NATUREZA JURÍDICA DO TRANSPORTE MARÍTIMO DE LONGO CURSO

O transporte marítimo, enquanto uma atividade, é submetido aos preceitos do direito privado mas, não por isso, deixa de ser regulamentado pela Antaq. [3]

A atividade privada do transporte é, portanto, disciplinada pelas regras gerais do Código Civil (art. 732 do CC) e os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais.

Pelo regramento do Código Civil, o transportador poderá recusar o transporte nas seguintes hipóteses: “embalagem inadequada, a que possa pôr em risco a saúde das pessoas, ou danificar o veículo e outros bens” (art. 746). Também poderá recusar o serviço “cujo transporte ou comercialização não sejam permitidos, ou que venha desacompanhada dos documentos exigidos por lei ou regulamento” (art. 747).

Somente nessas hipóteses (rol taxativo do Código Civil) é que o transportador disporia do exercício do direito de recusa.

Neste primeiro momento, nota-se que o direito estabelecido pela Resolução Normativa nº 18/2017 instituiu hipótese não amparada no Código Civil, nem tampouco na legislação especial de regência (Código Comercial e Decreto-Lei nº 116/1967), a saber:

Pelo contrato de transporte, alguém se obriga, mediante retribuição [4], a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas (art. 730 do CC).

Por ser o serviço de transporte um contrato bilateral, regra geral, o usuário que se nega a pagar o serviço ao transportador poderá invocar a exceção do contrato não cumprido, negando-se, via de consequência, a prestá-lo (art. 476 do CC). Entenda-se: pagamento do serviço de transporte relacionado ao frete ajustado. [5]

Sendo contratado o pagamento do frete no local do destino (freight collect), havendo a recusa do pagamento pelo usuário mesmo após executado o serviço, em si, do transporte, o transportador marítimo dispõe da prerrogativa de reter a mercadoria até ver liquidado o seu frete (art. 7º do Decreto-Lei nº 116/1967).

No caso específico do transporte internacional de cargas com pagamento do frete no local do embarque (freight prepaid), a pretensão de legitimar a recusa do serviço de transporte fundado no princípio da autonomia da vontade (art. 421 do CC) em concurso ao poder de retratação do transportador (art. 428, IV, do CC) é afastada pela vinculação da proposta ao proponente.

Isso porque a oferta ao público [6] de uma linha regular de transporte marítimo equivale à proposta de contrato e, sendo aceita por um usuário através da reserva de praça (booking note [7]), as relações jurídicas daí decorrentes encerram-se em uma nítida formação de contratos [8], donde referida proposta obriga o transportador a cumpri-lo (arts. 427, 428, I, c/c 429 do CC).

Bem por isso que o presente estudo explora apenas a hipótese de recusa do serviço de transporte em função da “inadimplência comprovada” prevista no inciso V, deixando de lado os incisos III (comprovada inviabilidade técnica) e IV (indisponibilidade operacional) do art. 10 da Resolução Normativa nº 18/2017, os quais, mesmo não guardando amparo no Código Civil e legislação especial de regência, foram corrigidos pelo próprio parágrafo único: “Fica vedada a recusa do transporte com fulcro nos artigos III e IV do presente artigo no caso de já ter ocorrido a reserva de praça (booking confirmation)”.

O campo aberto da expressão “inadimplência comprovada” prevista na Resolução Normativa nº 18/2017 tem encorajado os transportadores marítimos a justificar a recusa do serviço de transporte em virtude de uma “pendência financeira” de sobre-estadia de contêiner.

Nos caso de transporte marítimo contratado para exportação de mercadorias nacionais, esta recusa na prestação de serviço por parte do transportador em função de uma “inadimplência comprovada” de sobre-estadia de contêiner – embora ilegal –, pode vir até ser contornável pelo usuário por meio da busca no mercado por outro que o valha, em que pese a oferta restrita e limitada a poucas opções.[9]

Todavia, para os casos de importação, os usuários e/ou agentes intermediários sequer dispõem da liberdade de contratar – e ficam à mercê dos transportadores marítimos –, dado que apenas apontado aqui no Brasil através de parceiros do exterior, sendo estes, sim, os reais e verdadeiros contratantes direto dos serviços do transportador marítimo.

Em certas ocasiões, por questão de logística operacional, o transportador marítimo pode até embarcar a mercadoria do consignatário tido como “inadimplente comprovado” de sobre-estadia de contêiner, porém, valendo-se de sua posição dominante, nega-se a emitir o conhecimento de transporte marítimo Bill of Lading, impossibilitando, com isto, que o agente intermediário no destino proceda com conclusão da nacionalização e retirada das mercadorias.

Para tal corretivo, o usuário dispõe do exercício do direito de obter seu conhecimento dentro de 24 (vinte e quatro) horas depois de embarcada sua carga, nos termos do art. 578 do Código Comercial.

Por outras vezes, ainda na importação, o transportador marítimo recusa-se até mesmo a embarcar a mercadoria no exterior. A facilitar nossa compreensão, imaginemos uma situação hipotética e que tem sido corriqueira no setor de transporte marítimo de cargas:

Um determinado “transportador marítimo X” faz a oferta ao público de uma linha regular entre EUA e Brasil.

Um transportador marítimo não operador de navios “Y” (NVOCC) nos EUA contrata diretamente o serviço deste “X”.

Confirmada a reserva de espaço no navio de “X”, “Y” recebe o contêiner de “X”, estufa a mercadoria e coloca à disposição de “X” para embarque no porto apontado por “X” nos EUA.

Quando “X” solicita os dados à “Y” para emissão do correspondente Bill of Lading(conhecimento de transporte marítimo), depara-se com a informação de que o consignatário das mercadorias será “Z” no Brasil e, em função da “inadimplência comprovada” de supostos débitos de sobre-estadia de contêiner, nega-se a embarcar e a emitir o conhecimento de transporte marítimo. Tudo isso às vésperas da saída do navio de “X” dos EUA.

Mas alguém poderia questionar:

O NVOCC “Y” dispõe de relação contratual com o Transportador “X”, correto?

Sim.

O Consignatário “Z”, por sua vez, não dispõe de relação contratual com o Transportador “X”, correto?

Sim.

Como, então, o Consignatário “Z”, que não tem relação contratual direta com o Transportador “X”, pode exigir deste “X” o cumprimento de uma obrigação?

Que poder tem o Consignatário “Z” de exigir do Transportador “X” que execute o serviço de transporte?

A resposta para tal questionamento encontra-se também no Código Civil. O contrato de transporte é visto como uma espécie de estipulação em favor de terceiro, vale dizer, o NVOCC “Y” contrata o serviço do Transportador “X” e estipula em favor de terceiro (Agente Intermediário Consignatário “Z”) a referida obrigação. O que se estipula em favor de terceiro, no caso, o serviço de transporte, assegura ao beneficiário, no caso “Z”, que exija o cumprimento da obrigação, com anuência[10] às condições e normas do contrato (art. 436, parágrafo único, do CC).

Do ponto de vista do nosso direito privado, então, a Antaq, ao criar prerrogativa para um em detrimento do exercício do direito de outro, jamais poderia imiscuir na relação jurídica privada entre o transportador marítimo e usuário, indo para além do rol taxativo das hipóteses estabelecidas pelo Código Civil.

Mesmo porque, se o transportador marítimo dispõe de ação própria para buscar a “inadimplência comprovada do usuário”, não se pode valer de meios coercitivos indiretos para realização de seus supostos créditos[11], tido como arbitrários a gerar sua ilicitude (art. 122 do CC), sobretudo quando isso implica restrição da liberdade ao exercício da atividade econômica (art. 170, parágrafo único, da CF/1988).

A hipótese de recusa do serviço de transporte por inadimplência generalizada, de maneira geral, contraria, inclusive, o objetivo dos tratados e convenções internacionais de que o Brasil é signatário, de sorte que os 13 (treze) Acordos Bilaterais de navegação marítima firmados pelo Brasil, via de regra, incentivam os navios a participarem no transporte de mercadorias, sem criação de óbices capazes de prejudicar o desenvolvimento do intercâmbio marítimo.

Desta forma, o termo “inadimplência comprovada” que autorize a recusa do serviço por parte do transportador marítimo é digno de ser excluído das hipóteses do art. 10 da Resolução Normativa nº 18/2017 e, em sendo mantido, somente será admissível sua interpretação através da recusa pelo pagamento do frete (exceção do contrato não cumprido).

Qualquer outra nomenclatura que se queira emprestar à “inadimplência comprovada do usuário” diversa do pagamento de frete será tido como ilegal e repreendida pelo Judiciário.

Questionada a ouvidoria da Antaq sob o registro nº 19443/2018-64,[12] o órgão técnico interpretou a expressão “inadimplência comprovada” no seguinte sentido: “Quanto ao termo ‘inadimplência comprovada’, refere-se ao adimplemento das condições contratuais firmadas entre as partes. Caso o débito a título de demurrage ainda não esteja pacificado entre as partes, este não poderá ser avocado para justificar a recusa no transporte”.

Como se vê da consulta acima, para a Antaq é admitida a recusa do transporte marítimo para a hipótese de débito originário de sobre-estadia de contêiner ainda não pacificado entre as partes.

Mas o que seria, então, “não pacificado entre as partes”?

A existência de termo de responsabilidade assinado entre elas? Uma sentença judicial de 1ª instância condenando o devedor a pagar a sobre-estadia de contêiner? Ou o trânsito em julgado de uma ação judicial buscando o pagamento de sobre-estadia de contêiner?

Com todo o respeito ao órgão técnico, salvo melhor juízo, permanecemos com nossa opinião: a Antaq jamais poderia imiscuir na relação jurídica privada entre o transportador marítimo e usuário, indo para além do rol taxativo das hipóteses estabelecidas pelo Código Civil, Código Comercial e legislação especial de regência. No máximo, admitimos o termo “inadimplência comprovada” apenas a recusa pelo pagamento do frete (art. 476 do CC).

Sem prejuízo do disposto no Código Civil e legislação especial de regência, o transporte marítimo exercido em virtude de autorização rege-se pelas normas regulamentares e pelo que for estabelecido naqueles atos (art. 731 do CC). Daí o porquê da análise sob o viés do interesse público do setor regulatório, independentemente de se compreendê-lo como tanto.

3.1 Interesse público do serviço de transporte aquaviário

O STF não considerou como serviço público a respectiva atividade estatal de transporte aquaviário prevista no art. 21, XII, d, da CF quando do julgamento do RE 220.999-7/PE [13]. Naquela oportunidade, discutia-se a responsabilidade objetiva do Estado em virtude de a União ter desativado as atividades de uma empresa pública de transporte fluvial e suas consequências nos custos da produção de uma empresa privada. De acordo com o voto vencedor do Ministro Nelson Jobim, in verbis:

Não se diga que o transporte fluvial é dos serviços que integram os “fins do Estado”. Em outras palavras: a União não tem a obrigação jurídico-constitucional de manter empresas de transporte para atender o interesse privado. E fundamentou tratar o art. 21, XII, d, da CF: “A norma constitucional é de distribuição de competência federativa. Não é uma regra que crie dever ou obrigação”.

Em que pese o posicionamento do STF, ainda que admitida a hipótese de se sustentar o interesse do serviço de transporte como público, ver-se-á que a conclusão perfilha da mesma orientação acima abalizada, com suas peculiaridades.

Os serviços de transporte marítimo entre portos brasileiros e fronteiras nacionais ou que transponham os limites de Estado ou Território Compete podem ser explorados diretamente pela União ou mediante autorização, concessão ou permissão (art. 21, XII, d, da CF/1988). Mais adiante, a Constituição estabeleceu que a lei disporá sobre a ordenação do transporte aquático internacional, observados os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade (art. 178).

Por meio da outorga legal (Lei nº 9.432/1997), estabeleceu-se que a operação e exploração do transporte de mercadorias na navegação de longo curso é aberta aos armadores, às empresas de navegação e às embarcações de todos os países, observados os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade (art. 5º).

Partindo-se da premissa de que o serviço, em si, seria de interesse público e, dessa forma, submisso à fiscalização da Antaq[14], tem-se a compreendê-lo como essencial, respeitado o princípio da continuidade.

Trazendo os mesmos conceitos da lei que dispõem sobre o regime de concessão e permissão (Lei nº 8.987/1995) para o regime de autorização, não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando por inadimplemento do usuário (art. 6º, § 1º).

A exemplo disso, os serviços de fornecimento de energia elétrica. O não pagamento dos serviços correspondente a débitos atuais[15], mas nunca antigos[16], precedido de notificação, admite-se a suspensão por inadimplemento (Resolução Aneel nº 414/2010, art. 172, II, § 4º).

E para o serviço de transporte marítimo? Vale também a mesma regra? Não sendo pago o serviço, admite-se como legal a recusa por parte do transportador?

Pensamos que sim: a inadimplência comprovada para fins de recusa de um serviço de interesse público deve corresponder ao pagamento atual do frete, donde se conclui que os antigos e, quiçá, a sobre-estadia de contêiner jamais poderão servir de pretexto para utilização de meios coercitivos indiretos para realização de seus supostos créditos.

CONCLUSÃO

A Antaq tem legitimidade para estabelecer direitos e deveres aos usuários, agentes intermediários e aos transportadores marítimos que operam na navegação de longo curso. Referidos direitos e deveres estabelecidos pela Antaq devem, contudo, guardar absoluta pertinência com a lei que a instituiu (art. 27, IV, da Lei nº 10.233/2003).

O direito previsto no art. 10, V, da Resolução Normativa nº 18/2017 não guarda absoluta pertinência à Lei nº 10.233/2003. Pelo contrário, contraria-a, na medida em que disciplina hipótese discriminatória, ofendendo a garantia da isonomia ao acesso e uso da prestação de serviços de transporte marítimo.

Ainda que guardasse absoluta pertinência à Lei nº 10.233/2003, por ser serviço de natureza privada, o transporte marítimo é regido pelos preceitos constantes da legislação especial (Código Comercial e Decreto-Lei nº 116/1967), desde que não contrarie as disposições das regras gerais do Código Civil. O direito previsto no art. 10, V, da Resolução Normativa nº 18/2017 contrariou o rol taxativo das hipóteses de recusa do serviço pelo transportador previstas no Código Civil e Comercial, e, sendo admissível como válido, a interpretação do termo “inadimplência comprovada” deve ser única e exclusivamente decorrente de pagamento de frete (art. 476 do CC).

Nem mesmo o princípio da autonomia da vontade (art. 421 do CC) em concurso ao poder de retratação do transportador (art. 428, IV, do CC) é invocável a autorizar a recusa do serviço de transporte, por força do poder vinculante da oferta ao público de uma linha regular devidamente aceita pelo usuário através da reserva de praça (art. 427 do CC).

Do ponto de vista do interesse público do serviço de transporte marítimo, a autorização legal para operar e explorar a navegação de longo curso deve respeitar o princípio da continuidade, sendo ilegítima qualquer espécie de recusa, exceto se a inadimplência do usuário e/ou agente intermediário decorrer de frete atual. Jamais dívida antiga, o que nos conduz a concluir que, uma vez válido o art. 10, V, da Resolução Normativa nº 18/2017, o débito decorrente de sobre-estadia de contêiner jamais poderia ser admitido como recusa para execução do serviço de transporte.

REFERÊNCIAS E CITAÇÕES

[1] O STJ, em sede de AgRg-AREsp 799.050/RS, manteve o acórdão do TJRS no seguinte sentido: “Restrição para a liberação de mercadorias. Pagamento comprovado. Controvérsia que se resume ao pedido de liberação de mercadorias retidas pelo transportador, que inseriu restrição no sistema Siscomex da Receita Federal pela ausência de pagamento do frete ou da contribuição por avaria grossa (art. 7º do Decreto-Lei nº 116/1967). Restrição que se mostrou inverídica, já que, além de não haver avaria grossa declarada, foi comprovado o adimplemento do valor do frete. Na verdade, o litígio se dá pela não apresentação da via original do conhecimento de transporte (‘B/L Master’), em razão de um desacerto comercial entre os agentes de carga, não imputável à empresa autora (importador), permanecendo os bens retidos pelo armador, a mando do agente de exportação chinês. Esse cenário não poderia se perpetuar, haja vista que a discórdia entre a empresa que procedeu a exportação da China para o Brasil não pode gerar prejuízo a que, cumpriu todas as obrigações decorrentes da contratação, como é o caso da parte autora. Não subsiste, portanto, a anotação de restrição por motivo inverídico, devendo ser mantida a sentença de procedência da ação” (grifos nossos).

[2] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 447.

[3] “O art. 5º da Lei nº 9.432/1997 não subtrai as empresas estrangeiras dedicadas ao transporte marítimo de mercadoria ao alcance da legislação regulatória brasileira desse setor da economia, pois afirmar que a navegação é ‘aberta’ às empresas estrangeiras apenas significa que essa atividade é permitida, sem implicar que essa permissão exclua o exercício pelo Estado brasileiro de seu poder de polícia. Ademais, é juridicamente inadmissível num Estado democrático de direito criar-se, em um mesmo setor econômico, dois regimes jurídicos antípodas – uma para a empresa nacional e outro para as empresas estrangeiras.” (Joaquim Barbosa, ex-Ministro STF. In: Pareceres jurídicos. Coimbra: Almedina, v. I, 2017. p. 198)

[4] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 307: “O contrato de transporte é bilateral, simplesmente consensual e oneroso. Nascem dele obrigações para as duas partes. A de prestar o serviço, contraída pelo transportador, corresponde a de pagar o frete ou a passagem, pela outra assumida. Tais obrigações, além de outras, são interdependentes, evidenciado perfeito sinalagma”.

[5] GOMES, Carlos Rubens Caminha (Direito comercial marítimo. Editora Rio, 1978. p. 783): “Frete é a importância paga ao transportador pelo serviço de levar mercadorias de lugar a outro”.

[6] REsp 1.447.375/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 19.12.2016: “3. A oferta ao público, entendida como a divulgação de produto ou serviço a uma coletividade de pessoas utilizando um meio de comunicação de massa, equivale à proposta, caso apresente os requisitos essenciais do contrato, possuindo, portanto, o efeito de vincular o ofertante a partir da difusão da informação ao público-alvo(arts. 427 e 429 do CC). 4. É direito do aceitante exigir o cumprimento forçado do que foi declarado se a oferta dirigida ao público for feita apropriadamente, não sendo permitido ao ofertante arrepender-se. Tal tipo de divulgação faz parte do risco da atividade, sendo ínsitos os deveres de bem informar e de não enganar, de modo que há completa vinculação com o conteúdo divulgado. 5. O efeito vinculativo da proposta ou da oferta ao público constitui instrumento de estímulo à atuação responsável e à atuação ética não apenas de empresas, mas também das entidades de previdência privada” (grifos nossos).

[7] TJSP, Apelação nº 9135287-79.2000.8.26.000: “O liner booking note, que consubstancia o contrato de transporte pactuado entre as partes, e que foi celebrado em 28.05.1996, traz as especificações da carga, a forma de embarque, as datas, o preço ajustado, a quantidade a ser transportada em cada navio, o número de partidas, o porto de embarque e o de desembarque, a documentação, enfim, todas as particularidades atinentes ao interesse de cada contratante”.

[8] A natureza jurídica do conhecimento de transporte marítimo – Bill of Lading – é de evidência da existência da relação de contrato de transporte. Neste sentido, STJ, AREsp 1.247.565/ES, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, DJe 03.04.2018.

[9] De acordo com o sítio eletrônico da Antaq, a navegação marítimo de linhas regulares de longo curso no Brasil é realizada por 13 empresas, a saber: CMA CGM, Cosco Shipping, Evergreen, Hamburg Sud, Hanjin Shipping, Hapag Lloyd, Hyundai, Maersk, Mitsui Osk, Uasc, Yang Ming e Zim. Para um logística com rota Houston a Santos, apenas 4 empresas oferecem este serviço: Hamburg Sud (Ucla Sling 1 e Ucla Sling 2 – frequência semanal); Hapag Lloyd (GS1 e GS – frequência semanal); Maersk (GULFEX); NYK (ANG – frequência semanal); Com a aprovação da venda da Hamburg Süd para a Maersk pelo CADE, apenas 3 (três) empresas oferecem esta rota. (Disponível em: <http://portal.antaq.gov.br/index.php/navegacao/maritima-e-de-apoio/linhas-regulares/longo-curso/>)

[10] É o raciocínio inverso do julgado REsp 3169/RS, proferido pelo STJ, DJ 24.09.1990, p. 9984. Na disputa em juízo, buscava-se a caracterização do instituto da estipulação em favor de terceiro no transporte para fins de pagamento do frete; sem a anuência por parte do beneficiário, inexiste a estipulação em favor de terceiro. “Contrato de transporte. Responsabilidade pelo pagamento do frete. Emissão, pelo transportador, de duplicata de prestação de serviços, contra o destinatário. A simples circunstância de o remetente fazer constar do conhecimento de transporte que o frete seria pago pelo destinatário, a este não obriga, se não anuiu previamente, ou a posteriori, a assunção de tal responsabilidade. Maxime em se cuidando de entidade de direito público, a anuência deve ser inequívoca, e não se presume do simples recebimento da mercadoria por servidor subalterno. Inexistência de ‘estipulação em favor de terceiro’.’ Arts. 1.098 e parágrafo único, e 929 do Código Civil. Recurso especial conhecido e provido” (grifos nossos).

[11] Súmula nº 127 do STJ: “É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado”. Súmula nº 547 do STF: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”. Súmula nº 323 do STF: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. Súmula nº 70 do STF: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”.

[12] Disponível em: <http://web.antaq.gov.br/Portal/OuvidorV2/ManifestacaoAcompanhar.aspx>.

[13] STF, RE 220.997-1/PE, Rel. Marco Aurélio Mello, DJ 24.11.2000. No mesmo sentido: GOMES, Orlando, op. cit.: “Pode o transporte constituir objeto de serviço público diretamente prestado pelo Estado ou mediante concessão a particular. Nesse caso, o transportador é obrigado a prestar regularmente o serviço nas condições estabelecidas no respectivo regulamento. O serviço privado de transporte, hoje limitado ao carreto de mercadorias em curto percurso, às mudanças e ao deslocamento de pessoas por meio de transporte individual não é obrigatório. Pode o transportador negociá-lo conforme seu interesse, limitada sua liberdade de efetuá-lo, em princípio, na estipulação do preço”.

[14] Acórdão TC nº 004.662/2014-8, item 19: “[…] a exigência de autorização para a atuação no país de armadores estrangeiros por parte da Antaq resulte na redução do número de firmas atuantes no país ou no mínimo desincentivo a entrada de novos players no mercado dada a criação de barreira de entrada, principalmente no mercado de linhas não regulares (tramp), o que consequentemente favoreceria a concentração ou redução de ofertantes e a formação e/ou a atuação de cartéis nesse mercado, com efeitos nocivos aos usuários”; item 21: “Embora exista liberdade de tráfego de embarcações estrangeiras no país para navegação de longo curso sem necessidade de outorga de autorização, isso não elide a atribuição da Antaq de regular e fiscalizar a atuação de armadores estrangeiros, exercida por meio de análise de denúncias que chegam à Agência” (grifos nossos).

[15] REsp 1.342.608/SP, DJe 27.09.2017. “Processual civil e administrativo. Recurso especial. Energia elétrica. Débito atual. Corte. Possibilidade. Necessidade de comunicação prévia. Ocorrência. Súmula nº 7/STJ. 1. É possível a suspensão do fornecimento do serviço de energia elétrica em razão do inadimplemento atual do consumidor, desde que a medida seja antecedida por aviso prévio. No que diz respeito à controvérsia referente à possibilidade de suspensão do serviço de energia elétrica, a Primeira Seção negou provimento ao Recurso Especial nº 1.412.433/RS da CIA. Estadual de Distribuição de Energia Elétrica CEEED RS em 25.04.2018, sob o rito do art. 543-C do CPC/1973, apreciando a tese delimitada: ‘A possibilidade de o prestador de serviços públicos suspender o fornecimento de energia elétrica em razão de débito pretérito do destinatário final do serviço’. Mantido o acórdão do TJRS sob a ementa: ‘Suspensão do fornecimento. É vedado o corte do fornecimento de energia elétrica quando o débito está em discussão judicial e trata-se de dívida pretérita, conforme jurisprudência deste Tribunal e do ST’” (grifos nossos).

[16] AgRg-Ag 1.320.867/RJ, DJe 19.06.2017: “Processual civil. Administrativo. Agravo regimental no agravo de instrumento. Código de Processo Civil de 1973. Aplicabilidade. Violação ao art. 535 do CPC. Inocorrência. Água e energia elétrica. Prazo prescricional. Ausência de interesse em recorrer. Serviços essenciais. Suspensão do fornecimento. Débitos antigos. Impossibilidade. Dano moral. Ocorrência. Razoabilidade e proporcionalidade. Revisão. Súmula nº 7/STJ. Incidência. Argumentos insuficientes para desconstituir a decisão atacada” (grifos nossos).

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

BARBOSA, Joaquim. Pareceres jurídicos. 1. ed. São Paulo: Almedina, v. I, 2017.

BRASIL. Antaq. Disponível em: <http://portal.antaq.gov.br/index.php/navegacao/maritima-e-de-apoio/linhas-regulares/longo-curso/>. Acesso em: jun. 2018.

______. Antaq. Disponível em: <http://web.antaq.gov.br/Portal/OuvidorV2/ManifestacaoAcompanhar.aspx>. Acesso em: jun. 2018.

______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg-AREsp 799.050/RS, Brasília, 2017, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti.

______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.447.375/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 19.12.2016.

______. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 1.247.565/ES, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, DJe 03.04.2018.

______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 3169/RS, Rel. Athos Carneiro, DJ 24.09.1990, p. 9984.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.412.433/RS, Rel. Herman Benjamin, 25.04.2018.

______. Supremo Tribunal Federal. RE 220.997-1/PE, Rel. Marco Aurélio Mello, DJ 24.11.2000.

______. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 9135287-79.2000.8.26.000, São Paulo, 2005, Rel. Waldir de Souza José.

GOMES, Carlos Rubens Caminha. Direito comercial marítimo. Editora Rio, 1978.

GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro, Forense, 2000.

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