Nos últimos anos termos como Bitcoin, blockchain e Ethereum ganharam a atenção da grande mídia em razão da rápida valorização das criptomoedas, atraindo investidores e gerando desconfiança em especialistas. Porém, passado o boom que culminou com a valorização (e desvalorização) vertiginosa da Bitcoin em 2017, a atenção das empresas e dos governos se voltaram para o sistema em que essas moedas são baseadas: o blockchain.
A tecnologia apresentada em 2008 por Satoshi Nakamoto consiste em um sistema eletrônico peer-to-peer, ou seja, não há intermediários (middleman) nas transações realizadas. Isso confere maior fluidez e rapidez em operações internacionais, cujas operações podem levar dias, o que por si só é uma vantagem em um mundo globalizado, sem considerar a máxima tempo é dinheiro. O blockchain é um livro-razão digital que registra em ordem cronológica todas as transações realizadas no sistema, armazenando-as em blocos e acessíveis por todos. As premissas do sistema, seu grande chamariz, são sua inviolabilidade, rapidez, anonimidade e baixo custo, em razão da ausência de intermediários.
Ele foi concebido para registrar cronologicamente todas as transações realizadas com Bitcoin, vez que apenas era possível registrar valores na plataforma. Entretanto, com a criação da plataforma Ethereum em 2015, abriu-se a possibilidade do registro de dados nos blocos, abrindo o leque de possibilidades do uso do blockchain.
Em razão da sua segurança – uma vez inserido o dado no sistema ele não poderá ser alterado – além das já mencionadas vantagens, vários setores têm procurado desenvolver suas próprias plataformas baseadas nessa nova tecnologia, de modo a aprimorar e reduzir os custos de suas operações. Dentre os setores, deve-se destacar os ligados ao comércio exterior, que buscam reduzir ou até mesmo eliminar o uso de papéis e a burocracia envolvida nos processos de importação e exportação.
Importantes players estão avaliando a implementação de sistemas baseados no blockchain buscando benefícios com a redução do tempo e dos custos, além de dispensar o uso de intermediários.
Empresas de logísticas formaram o Blockchain in Transport Alliance (BiTA) e armadores estão se unindo a grandes empresas de tecnologia para desenvolverem sistemas próprios. E essa empreitada já tem se mostrado frutífera com a operação comercial realizada pelo HSBC entre Cargill e ING Bank envolvendo um carregamento de soja argentino tendo como destino a Malásia[1]. A operação, geralmente realizada com papéis e que leva de 5-10 dias para ser concluída, foi feita em apenas 24 horas.
O grande potencial do blockchain reside nos smart contracts, contratos elaborados em linguagem nativa e autoexecutáveis. Esses contratos, em teoria, reduzem os conflitos entre as partes envolvidas em determinada operação, vez que inseridas as informações no sistema, e.g. pagamento ou não, ele executa a previsão contratual para tal evento, e.g. determina a entrega do produto ou aplica as sanções previstas. As possibilidades aumentam exponencialmente quando inserimos na equação a possibilidade de conexão entre os smart contracts elaborados no blockchain e a internet das coisas, segundo Alan Morrison “eles serão fundamentais para as transações máquina-máquina em larga escala”[2].
A grande revolução no comércio exterior pode estar no uso combinado de sistemas baseados no blockchain com smart contracts. E mais, a PwC estima que em 2020 essa tecnologia será amplamente utilizada para transações simples que serão a base para os smart contracts[3].
A dúvida sobre o futuro do blockchain passa, assim, pela compreensão da hipótese monetária. Toda relação de mercado – e o comércio exterior é apenas mais uma expressão da relação de mercado – pressupõe a existência prévia de uma moeda. Não se fala aqui do objeto físico que facilita a troca, mas do sistema que precisa ter a sua legitimidade reconhecida. Assim, o fenômeno monetário pode ser compreendido como uma realidade dinâmica.
Essa realidade compreende duas fases. A primeira envolve o mimetismo onde se forma uma polarização de indivíduos que focam os seus desejos de riqueza no mesmo bem. Este bem até então uma forma provisória e privada de riqueza acaba ganhando legitimidade social. Ocorre, portanto, um processo de inclusão-exclusão que acaba conformando o mercado.
O segundo momento envolve a concorrência de “moedas parciais” onde se cria uma situação de violência recíproca, consolidando a ideia de que a moeda, e no caso o uso do blockchain, não é uma mercadoria.
Nesse sentido, cabe observar Aglietta e Orléan[4]:
(..) enquanto nas formas clássicas de concorrência o aumento pela demanda de um bem leva ao aumento de seu preço e, consequentemente, à diminuição da demanda, com a moeda ocorre exatamente o contrário. Quanto mais ela se consolida como “a” moeda, com o aumento da sua demanda, mais demandada ela será. A violência que dá origem a moeda traz consigo a confiança desejada pelos indivíduos mercantis, eliminando a incerteza que perturbava as suas relações.
Deve-se lembrar de que o uso do blockchain e dos contratos inteligentes em operações fora do ambiente das criptomoedas é novo, ainda em desenvolvimento, não sendo possível mensurar seu verdadeiro alcance e impacto na sociedade. Falhas existem e aperfeiçoamentos serão necessários, porém não se pode desprezar o seu valor[5].
Na opinião de Roberto Azêvedo, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), “uma tecnologia que dê segurança e confiabilidade às transações pode ser de grande utilidade para reduzir custos, simplificar transações e facilitar o acesso ao comércio”[6].
Em sendo assim, não há como frear o futuro, ignorando simplesmente a possibilidade de uso do sistema blockchain e smart contracts nas relações de comércio exterior, pois como já percebiam Ricardo e Hegel no século XIX, existe uma sociedade que não está sujeita às leis do estado, mas, ao contrário, sujeita o estado às suas próprias leis.
[2] “Over the long term, the blockchain concept is about creating new entities and processes that can be automated in whole or in part. New blockchain-inspired systems—public, private, or both—will be essential to the growth of the Internet of Things. They will be fundamental to machine-to-machine transactions at scale”. MORRISON, Alan. Blockchain and smart contract automation: an introduction and forecast. Disponível em: <http://usblogs.pwc.com/emerging-technology/blockchain-and-smart-contract-automation-an-introduction-and-forecast/>.
[3] Ibid.
[4] Michel Aglietta e André Orlean, La monnaie entre Violence et Confiance, pp.87-89.
[5] NIKOLIÉ et al. Finding the greedy, prodigal, and suicidal contracts at scale.Disponível em: < https://arxiv.org/abs/1802.06038>.
[6] OLIVEIRA, Eliana. Tecnologia do bitcoin vai ajudar comércio, diz diretor-geral da OMC. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia-do-bitcoin-vai-ajudar-comercio-diz-diretor-geral-da-omc-22309082#ixzz5FmgVLKK8>.