A pandemia COVID-19 dispensa comentários, sendo que em tempos de crise na economia brasileira, há dois remédios que podem ajudar as empresas: a carta fiança e o seguro garantia.
A fiança e o seguro garantia constituem modalidade de garantia pessoal de natureza contratual, onde um terceiro se compromete a realizar uma obrigação, caso devedor não venha a cumpri-la. Tanto a fiança quanto o seguro garantia equivalem a dinheiro para efeito de gradação de bens penhoráveis, embora não possuam liquidez imediata (geram o dever de “indenizar”).
Durante o trâmite processual, há situações em que o devedor é instado a depositar valores em juízo para garantir o objeto da ação ou futura execução.
Como dito anteriormente, equiparados a dinheiro para efeito de gradação de bens penhoráveis, os institutos, na modalidade de fiança bancária e seguro garantia judicial, passaram a ser admitidos no processo judicial trabalhista, tanto na fase de conhecimento como em execução.[1]
O uso desses remédios processuais pode trazer vantagens, como, por exemplo, a preservação do fluxo de caixa, permitindo liquidez e melhor alocação de recursos, geração de empregos, o levantamento de penhora sobre bens e/ou créditos, a garantia ao exercício pleno do direito de defesa e a conciliação entre os princípios da menor onerosidade e o da efetividade da execução. Em contrapartida, a utilização comporta alguns desafios, em razão da ausência de regulamentação específica (formalidade e conteúdo), a incompatibilidade e/ou inaptidão de certos aspectos dos institutos no âmbito das garantias processuais e a insegurança jurídica e resistência da Justiça do Trabalho.
Antes de adentrarmos especificamente na aplicação dos institutos no processo do trabalho, é pertinente tecermos alguns comentários sobre a fiança e o seguro garantia, sob a ótica do Código Civil.
A fiança é um contrato personalíssimo e acessório, pelo qual o fiador se obriga a satisfazer ao credor uma obrigação contraída pelo devedor, caso este não a cumpra. [2] Tem como principais características: a prestação por pessoa física ou jurídica; exigência de contrato escrito; fixação por prazo determinado ou indeterminado; a garantia de parte ou a totalidade da obrigação; cobrir dívida presente e/ou futura; impor responsabilidade subsidiária ao fiador; garantir o benefício de ordem ao fiador; sub-rogação; direito de regresso; permitir a exoneração voluntária quando fixada sem limitação de tempo.
Aparentemente algumas características apresentam incompatibilidade com processo do trabalho. De forma exemplificativa, podemos citar: a idoneidade jurídica, econômica e financeira, pois a CLT fala expressamente que o depósito recursal poderá ser substituído por “fiança bancária”[3], ao oposto do Código Civil que pode ser prestada por pessoa física ou jurídica; a vigência por prazo determinado; a limitação de responsabilidade; o benefício de ordem, que impacta diretamente no andamento da execução (morosidade); a exoneração voluntária.
Já o seguro garantia é um contrato de seguro em que o segurador, mediante o pagamento do prêmio estipulado, obriga-se a garantir interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados.[4] As principais características são: o segurador depende de autorização legal; contrato formal (apólice); vigência por prazo determinado; possibilidade de recondução tácita do contrato por igual prazo; boa-fé contratual; perda do direito à indenização por mora do tomador (prêmio); desobrigação por agravamento do risco ou outra previsão contratual.
Assim como a carta fiança, o instituto apresenta algumas incompatibilidades, como, por exemplo, idoneidade jurídica, econômica e financeira, a vigência por prazo determinado, a possibilidade de perda do direito à indenização e as causas de exoneração de responsabilidade.
Os entraves relacionados à aplicação dos institutos no processo do trabalho passaram a ser enfrentados mediante a aplicação supletiva (art. 899, CLT) das regras previstas na LEF (Lei de Execução Fiscal nº 6.830/80), Portaria nº 440/16 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Circular 477 da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), entretanto, a jurisprudência não é uniforme.
A 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), por exemplo, decidiu que o seguro garantia não pode substituir o depósito judicial em processos, pelo fato de conter prazo de vigência. Por outro lado, a 6ª e a 8ª Turmas aceitam a troca por considerar que a lei não trata de prazo de vigência, estabelece apenas que “o depósito recursal poderá ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial” (art. 899, § 11º, da CLT).[5]
Destarte, principalmente em razão da necessidade de padronização dos procedimentos de recepção de apólices de seguro garantia judicial e de cartas de fiança bancária para substituição a depósitos recursais e para garantia da execução trabalhista, assim como para fins de emprestar maior efetividade às decisões judiciais e às execuções dessas decisões[6], considerando ordenamento celetista, a Instrução Normativa nº 3 do TST (inserido pela Resolução Administrativa 2048, de 17/12/18) e Orientação Jurisprudencial nº 59, da SDI-II, do TST, conjuntamente com os institutos mencionados anteriormente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho editaram em 16/10/19 o Ato Conjunto nº 1/19.
Nesse passo, tem-se que, para fins de validade do seguro garantia judicial, é necessária a presença dos seguintes requisitos: a) seguradora idônea e economicamente capaz; b) valor (execução): prêmio equivalente ao valor original do débito atualizado, mais juros, incluídos encargos e despesas, acrescido de 30%; c) valor (recursal): montante da condenação, acrescido de 30%, observados os limites e regras da Lei 8.177/91 e item II da IN nº 3/TST (teto e complementação); d) previsão de atualização da indenização pelos índices legais aplicáveis aos débitos trabalhistas; e) vedação de cláusula de desobrigação/desoneração; f) vigência mínima de três anos; g) cláusula de renovação automática. Aplica-se à fiança bancária, observadas as suas particularidades, a cláusula de renúncia ao benefício de ordem, bem como a fixação de responsabilidade solidária do fiador.
Os institutos apresentam ainda algumas questões peculiares, dentre as quais: a) aplica-se às garantias pós Lei 13.467/17; b) a certidão da SUSEP atesta a idoneidade presumida; c) validade do registro da apólice pode ser feita através de consulta eletrônica[7]; d) apresentação em igual prazo àquele previsto para a prática do ato processual, mas anteriormente à penhora/depósito em dinheiro; e) a irregularidade/intempestividade são casos de deserção ou não conhecimento; f) a comprovação de renovação é incumbência exclusiva do tomador, tornando desnecessária intimação específica para fazê-lo; g) permitida a complementação do depósito em espécie mediante a apresentação do seguro; h) caracterizado o sinistro, o não pagamento da indenização autorizará o direcionamento da execução em face da seguradora no limite da garantia; i) é permitida a substituição de bem penhorado/depositado pelo seguro garantia, excetuado o depósito em espécie, e desde que haja anuência do credor; j) veda a substituição do depósito/penhora em espécie pelo seguro garantia.
Sobre o tema, em 03/02/2020, o Conselho Nacional de Justiça proferiu, em procedimento de controle administrativo (Processo nº 0009820-09.2019.2.00.0000), liminar suspendendo provisoriamente a eficácia dos arts. 7º e 8º do Ato Conjunto nº 01/2019, justamente aqueles que vedam a substituição do depósito/bloqueio em dinheiro pela carta fiança e/ou seguro garantia, com fulcro nos seguintes fundamentos: a) contrariedade ao artigo 899, § 11, da CLT; b) artigo 835, § 2º, do CPC (art. 882, CLT) - equipara o seguro/fiança ao depósito em dinheiro; c) artigo 847, caput, CPC (art. 769 CLT) autoriza o requerimento de substituição, desde que demonstrada menor onerosidade (necessidade) para o devedor e ausência de prejuízo ao credor; d) reserva de jurisdição e independência funcional da Magistratura (art. 2º da CF e 40º da LOMAN); e) atribuição meramente administrativa.
No presente caso, sopesou o fato de as empresas de telefonia estarem se preparando financeiramente para o “Leilão 5G’”, e a retenção dos valores impactaria, por exemplo, em investimentos e produtividade.
Em 17/02/2020, o TST, após analisar os requisitos[8] de validade da apólice, autorizou a substituição depósito recursal por seguro garantia, em ação[9] ajuizada anteriormente à reforma trabalhista, ainda que o requerimento tenha sido feito pela empresa em dezembro de 2019, haja vista que a decisão proferida pelo CNJ, que suspendeu a eficácia dos arts. 7º e 8º do Ato Conjunto nº 01/2019, foi superveniente ao fato.
Caso seja aplicada em casos análogos, a decisão pode impactar muito a economia brasileira, e parece que o cenário atual caminha para isso, pois, na última sexta-feira (27/03/2020), o Plenário do CNJ, em decisão proferida no Processo nº 0009820-09.2019.2.00.0000 – anteriormente citado –, declarou nulos os artigos arts. 7º e 8º, do Ato Conjunto nº 01/2019.
Em tempos de crise econômica, sopesando inclusive a pandemia do COVID-19, estamos falando em bilhões de reais que estão retidos, montante que pode ser realocado pelas empresas em diversas frentes. Como dito previamente, alguns exemplos são: a preservação do fluxo de caixa; a geração/preservação de empregos; o levantamento de penhora sobre bens e/ou créditos; a garantia ao exercício pleno do direito de defesa e a conciliação entre os princípios da menor onerosidade e o da efetividade da execução.
Atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 6.160/2019, apensado aos Projetos de Lei nº 5.266/19 e 5.310/19, cuja finalidade é a regulamentação da matéria, por meio da alteração da redação ou acréscimo de parágrafos artigo 899 da CLT.
As principais propostas do Projeto de Lei são: a) possibilidade de substituição do depósito recursal em espécie a qualquer tempo, mesmo aquele realizado anteriormente à Lei 13.467/17; b) Inexigência do acréscimo de 30% (depósito recursal); c) renovação ou substituição da garantia até o prazo de 15 (quinze) dias anteriores ao término da vigência do instrumento; d) oportunidade para regularização após regular intimação, no caso de inobservância de quaisquer dos requisitos estipulados (excetuada intempestividade).
Enfim, mesmo diante das recentes decisões e eventual aprovação do Projeto Lei, em se tratando de Brasil, a insegurança jurídica ainda é um receio no particular, mas não há dúvidas que uma luz foi acesa.
[1] Arts. 882 e 899, § 11º, da CLT; INs 39 e 41 do TST; OJ 59, item II, da SBDI-2, do TST; Lei 6.830/80 (LEF); Ato Conjunto nº 01/2019 do TST.CSJT.CGJT.
[2] Arts. 818 a 839 do CC.
[3] Art. 899, § 11º, da CLT.
[4] Arts. 757 a 802 do CC.
[5] Fonte: Jornal Valor Econômico│Legislação; Título: “TST rejeita substituição de depósito recursal por seguro”; Matéria publicada em 24/09/19, por Beatriz Olivon.
[6] Trecho extraído do Ato Conjunto nº 1/19 do TST. CSJT.CGJT.
[7] Endereço eletrônico: https://www2.susep.gov.br/safe/menumercado/regapolices/pesquisa.asp
[8] Artigo 3º do Ato Conjunto nº 1/19 do TST. CSJT.CGJT.
[9] AIRR 214-53.2014.5.06.0019.
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