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O cancelamento da Cláusula de Inalienabilidade


Diz o artigo 1.848 do Código Civil brasileiro que, se o testador quiser, e tiver justa causa para tanto, pode gravar os bens da legítima com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e de incomunicabilidade.

É uma cláusula de restrição do direito de disposição do patrimônio imobiliário, visando conservá-lo quando transmitido para as mãos do beneficiário, impedindo sua alienação e consequente dilapidação do patrimônio. Dessa forma impede, sobremaneira, que o proprietário exerça um dos poderes inerentes ao domínio: o de dispor livremente do bem (art. 1.228, caput, do CC[1]).

A doutrina ensina que a cláusula de inalienabilidade foi difundida no ano 69 d.C., com o intuito defender o patrimônio contra a dilapidação póstuma, como que uma reação ao egoísmo e prodigalidade de seus descendentes, em consonância ao entendimento já presente na Roma antiga, em que o patrimônio da família possuía caráter inalienável, sendo desonroso se desfazer dos bens dos antepassados.

A instituição de tal cláusula somente pode ser feita através de atos de liberalidade (testamento e doação), porém não sendo possível através de contratos de compra e venda, permuta, dação em pagamento entre outros contratos onerosos.

A cláusula também pode ser instituída através da chamada substituição fideicomissária, ou fideicomisso, prevista no artigo 1951 do Código Civil. No fideicomisso o testador institui herdeiro ou legatário, chamados fiduciários, que recebem a herança (seja patrimônio móvel ou imóvel) sob condição resolutiva e de forma restrita.

A condição resolutiva aperfeiçoa-se em três hipóteses: com a morte do fiduciário; no transcurso de determinado tempo previsto pelo testador, ou ainda sob a ocorrência de certa condição determinada no testamento. Ocorridas uma das três hipóteses, resolve-se a propriedade em mãos do fiduciário e este deve, obrigatoriamente, transmitir a herança que recebeu a outra pessoa, também estipulada no testamento, que é chamado fideicomissária.

Dessa forma, a cláusula de inalienabilidade é instituída em testamento e pode tanto gravar os bens transmitidos tanto para os fiduciários quanto aos fideicomissários, ou em ambos os casos.

A cláusula de inalienabilidade é na verdade, uma forma primária de planejamento sucessório prevista na lei civil brasileira, sem que isso caracterize transação sobre herança de pessoa viva (pacta corvina).

Se em testamento, somente se pode gravar os bens da legítima, que é a porção dos bens que devem ser, legal e obrigatoriamente, atribuídos aos herdeiros necessários, que são os ascendentes, descendentes e o cônjuge (ou companheiro), desde que exista justa causa expressa.

Segundo o art. 1.848 do atual código civil, o testador não tem a prerrogativa de impor as cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade) sobre os bens da legítima, exceto se houver justa causa. Portanto, os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), a priori, têm direito de receber a legítima (metade da herança) livre de qualquer espécie de restrição. Com relação ao restante da herança, o testador tem liberdade para impor as cláusulas restritivas mesmo que não haja justa causa para tanto.

Na vigência do Código Civil revogado, o testador poderia gravar livremente os bens, sem que lhe fosse imposta a necessidade de justificar o ato.

A cláusula de inalienabilidade pode ser absoluta (quando impede a alienação a qualquer pessoa) ou relativa (quando impede a alienação apenas a alguns indivíduos). Também pode ser vitalícia (a restrição extingue-se com o falecimento do proprietário beneficiário) ou temporária (extingue-se a termo certo).

Nota-se que não existe cláusula de inalienabilidade perpétua, cuja transmissão do gravame se faça automática e sucessivamente às gerações futuras, mas somente vitalícia. No silencio, presume-se que o doador ou testador estipulou a cláusula como sendo vitalícia. A temporária deve constar expressamente da manifestação de vontade.

Outra presunção que deve ser citada foi cristalizada na súmula n.º 49 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963, onde a cláusula de inalienabilidade inclui presunção de existência da incomunicabilidade de bens. Apesar de antiga e referente ao Código Civil de 1916, a súmula veio a ser adotada pelo Código Civil vigente, mais precisamente, e de forma mais ampla (inclui a presunção de existência da cláusula de impenhorabilidade também) em seu artigo 1.911, caput[2].

O Código Civil de 1916 dava caráter irrevogável à cláusula de inalienabilidade, conforme redação do antigo artigo 1.676, do Código revogado[3]. Por construção pretoriana, a justiça brasileira na vigência do Código Civil passado e, analisando a questão sob a ótica do aparente conflito entre normas infraconstitucional e norma constitucional (direito à propriedade), adotou posição no sentido de atenuar a aplicação do artigo 1.676, cujo texto delegava grande possibilidade do dominus clausular ampla e irrestritamente como inalienáveis os bens por ele transmitidos, especialmente aqueles integrantes da legítima dos herdeiros.

Caso contrário, teríamos que enfrentar a imensa rigidez da cláusula de inalienabilidade, cujo cancelamento era proibido por decisão judicial, fosse aquela instituída inter vivos ou causa mortis, à exceção de eventual conflito entre interesse privado e público (desapropriação ou satisfação de tributos), mas, derrogando, de sua parte e inconstitucionalmente, o direito de propriedade do beneficiário para livre dispor o seu patrimônio gravado previsto na lei civil.

Assevera-se que, em alguns casos (principalmente no planejamento sucessório), a cláusula da inalienabilidade se mostra razoável quando vem ao encontro da intenção do doador e, por extensão, em benefício do donatário, de modo a imobilizar o bem sob a propriedade deste para assegurar-lhe um substrato financeiro garantidor de uma vida confortável, isto é, assegurar à entidade familiar uma base econômica financeira segura e duradoura, impedindo-o de dilapidar o patrimônio recebido por liberalidade.

No entanto, nem sempre será assim, seja porque a imobilização do bem nas mãos dos donatários poderá não lhes garantir a subsistência, seja porque a própria função social do imóvel objeto do negócio a título gratuito resta por todo combalida, assumindo-se uma posição "antieconômica", nas palavras de Clóvis Bevilacqua, com a sua retirada do mercado por muitas décadas, cristalizando-o no patrimônio de quem dele não mais deseja ser o seu proprietário.

Ainda sob o enfoque da disposição do código anterior, brilhante o exemplo narrado a seguir, extraído do voto do Ministro Do Superior Tribunal de Justiça, Dr. Cesar Asfor Rocha[4]:

  • “Assim, por exemplo, se um herdeiro contemplado com um bem de grande valor, não dispusesse de rendimento algum, e estivesse vivendo angústias por estar a sua família sofrendo dificuldades, sem recursos para atender às mais básicas necessidades de sobrevivência, seria justo manter-se a integralidade do patrimônio clausurado e possibilitar a sua fruição somente para após a sua morte, pelos seus filhos, se estes mesmos já estariam agora necessitados?”

O Superior Tribunal de Justiça, mesmo sob a vigência do Código revogado, insertou no direito pátrio, decisões que confirmavam a flexibilização da regra de irrevogabilidade da cláusula, e de certa forma, influenciaram o projeto de lei do que veio a ser o atual Código Civil.

Dessa forma, os legisladores inseriram o artigo 1.848, no Código Civil[5] atual, que passou a exigir que o testador ou doador da inalienabilidade, nos casos de testamento e doação, indique expressamente uma justa causa para a restrição imposta, para que não haja privilégios aos excessos de proteção ou caprichos desarrazoados.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (Código Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 1.580-1.581) ponderam que pode ser considerada justa causa a prodigalidade, ou a incapacidade por doença mental, que diminuindo o discernimento do herdeiro, torna provável que esse dilapide a herança.

Como se vê, operou-se verdadeira inversão na lógica existente sob a égide do CC de 1916, iniciada nos Tribunais através da jurisprudência, que acabou por influenciar o legislador ao aprovar o artigo 1.848 do Código Civil vigente.

Com efeito, contemporaneamente, a restrição cogitada deve ser concebida com temperamentos, podendo ser abrandada pelo contexto factual em que ela foi inserida e, sobretudo, havendo justo motivo para que se mantenha congelado o bem sob a propriedade dos donatários que manifestam não possuir interesse em manter sob o seu domínio o imóvel.

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[1] Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

[2]Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.

[3] Art. 1.676: A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade. (g.n.)

[4] REsp 10020/SP, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 09/09/1996, DJ 14/10/1996, p. 39009)

[5] Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.

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