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Teletrabalho, ausência de controle de horário, redução de jornada... Algo não se encaixa!


Com o avanço da pandemia provocada pelo coronavírus, surgiu, na seara laboral, a necessidade de adoção de medidas de prevenção de contágio que não implicassem significativo impacto no ritmo de produção. Nesse contexto, o teletrabalho, ou “home office”, adquiriu inegável relevância. Seja para evitar uma desnecessária exposição ao agente infeccioso, seja para atender restrições de funcionamento impostas pelo Poder Público, nas atividades que assim o permitiram, houve massiva migração de trabalhadores para o regime de trabalho à distância.

Esse movimento foi facilitado pela MP 927[1], que dispõe sobre uma série de iniciativas trabalhistas destinadas ao enfrentamento do estado de calamidade pública. Um de seus dispositivos, porém, deu continuidade à polêmica iniciada com o advento da Lei nº 13.467/17, também conhecida como reforma trabalhista. Trata-se da exclusão do teletrabalho do regime de jornada de trabalho previsto no capítulo II da CLT.

O fato de o colaborador passar a desempenhar suas atividades fora do estabelecimento físico, ou seja, em ambiente remoto, fora das vistas do empregador, naturalmente fez surgir a ideia de que a jornada de trabalho não necessita mais ser controlada. E essa conclusão acabou reforçada pela literalidade dos artigos 62, III, da CLT[2], e 4º, §§1º e 5º[3], da MP 927.

Todavia, pergunta-se, esse será o posicionamento da Justiça do Trabalho? Isto é, a regra que exclui essa modalidade de trabalho do regime de jornada será reconhecida como de caráter absoluto ou será relativizada diante do princípio da primazia da realidade?

Muitos doutrinadores defendem que a questão necessita ser dirimida através do exame de compatibilidade ou incompatibilidade do regime de trabalho com o controle de jornada, não se tratando, portanto, de uma opção conferida ao empregador. Há também considerável jurisprudência nesse sentido - desde que coloquemos de lado o contexto da pandemia, evidentemente por se tratar de fato recente.

Traçando um curioso paralelo, visto que tivemos a oportunidade de acompanhar inúmeros casos do tipo, a situação muito se assemelha àquela já enfrentada por empresas transportadoras em relação à jornada dos motoristas rodoviários.

Por muito tempo perdurou junto às cortes trabalhistas, com amparo no artigo 62, I, da CLT[4], o entendimento de que as próprias características da atividade de “motorista externo” impediam ou dificultavam a fixação e o controle da jornada de trabalho, assim atraindo a aplicação de idêntica regra exceptiva. Como consequência, e grosso modo, direitos como o pagamento de horas extras não alcançavam trabalhadores investidos na função. Os constantes avanços tecnológicos e a evolução da própria jurisprudência, entretanto, trataram de alterar esses panorama.

A utilização de sistemas de rastreamento por satélite; mecânicas de trabalho que envolvem a retirada e entrega dos veículos junto às dependências do empregador, respectivamente, ao início e término da jornada; roteiros prévia e meticulosamente traçados; meios alternativos de registro dos horários de trabalho, como diários de bordo, fichas de trabalho externo, entre outros; fez prevalecer o entendimento de que, embora desenvolvida majoritariamente em ambiente externo, a jornada de tais trabalhadores é, sim, passível de controle e fiscalização.

A partir de então, condenações ao pagamento de horas extras tornaram-se recorrentes, muitas fundadas em fantasiosas e absurdas jornadas declaradas pelos trabalhadores. Afinal, os empregadores, seguros de uma condição que julgavam consolidada, sequer mostram-se capazes ou simplesmente não se preocupam em demonstrar os horários efetivamente cumpridos pelos motoristas, enquanto juízes e tribunais guiam suas decisões por uma aplicação, muitas vezes, desarrazoada da Súmula 338, I, do TST[5].

O mesmo risco emerge em relação ao teletrabalho.

Como estamos a tratar, basicamente, de atividades que normalmente seriam desenvolvidas no estabelecimento físico, mas que por ora serão desempenhadas por acesso remoto, num ambiente virtual, revela-se, pelo menos em tese, plenamente possível a mensuração da produção e atividade do empregado.

O artigo 6º da CLT, mais especificamente em seu § único[6], equipara “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão” aos meios pessoais e diretos de igual finalidade. Assim, a jornada se mostraria passível de controle pelo registro de entrada e saída do ambiente virtual (“login” e “logout”), pela adoção de sistema de ponto remoto (“time tracking”), pelo emprego de software específico (“Toggl” e “Bitrix”, por exemplo) e/ou pelo preenchimento de planilhas, somente para citarmos algumas possibilidades.

No ensejo, o §3º do artigo 74 da CLT[7] prevê a adoção de mecanismos de registro de horário que ficam em poder do empregado, enquanto o §4º do mesmo dispositivo autoriza o chamado registro de ponto por exceção, desde que previsto em acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.

Mais a mais, revela destacar que os contratos de trabalho em questão, salvo exceções pontuais, foram originalmente concebidos para execução do trabalho presencial, com submissão do empregado a horários pré-determinados e respeito à carga horária diária, semanal e mensal definidos em legislação ou negociação coletiva. Por conseguinte, a manutenção de atividades com possibilidade de extrapolação da jornada de trabalho originalmente contratada poderá facilmente ser interpretada como uma alteração lesiva ao empregado.

Aliás, esse último aspecto, notadamente após o advento da MP 936, leva-nos a um segundo questionamento: como aplicar a redução proporcional de jornada e salário a um trabalhador que não se submete à imposição e controle de horários?

A problemática é tão evidente que a Portaria nº 10/2020, que edita normas relativas ao processamento e pagamento do Benefício Emergencial (BEm) referido na mesma MP, por sua vez devido aos empregados com redução acordada de jornada e salário, traz em seu artigo 4º, §3º, I, a seguinte prescrição:

Art. 4º, §3º - O BEm não será devido caso verificada a manutenção do mesmo nível de exigência de produtividade ou de efetivo desempenho do trabalho existente durante a prestação de serviço de serviço em período anterior à redução proporcional de jornada de trabalho e salário para os seguintes trabalhadores:

I – os empregados não sujeitos a controle de jornada (...)

Ora, como será feita essa avaliação? Melhor, imagine-se o comando do empregador para que o empregado restrinja sua produtividade de modo a garantir o cumprimento do acordo de redução de jornada pactuada; ou, ainda, o corte parcial de salário sem a correspondente e proporcional redução de jornada, em total desrespeito à determinação de manutenção do salário-hora contida na própria MP 936...

A nosso ver, há nítida incompatibilidade de conceitos, o que somente contribui para gerar ainda mais insegurança jurídica, já que, diante desse cenário, afigura-se também o risco de nulidade desse pacto.

Haveria outra opção?

No tocante ao controle de jornada, conforme citamos nos parágrafos anteriores, há inúmeras alternativas que podem ser adotadas e até pactuadas individualmente, entre elas a também já mencionada marcação de ponto por exceção (art. 74, §4º, da CLT). Inexiste, assim, razão para que os empregadores se exponham a tamanho risco.

De outro lado, destacamos que a possibilidade de redução transitória e emergencial de salários não se encontra restrita aos termos da MP 936, senão para fins de concessão do Benefício Emergencial aos trabalhadores. A Constituição Federal, em seu artigo 7º, VI[8], autoriza sua estipulação via negociação coletiva, o que, obviamente, pode se dar por meio de um maior leque de opções, como diferentes percentuais e prazos de duração, observada a ressalva contida no artigo 611-A, §3º, da CLT[9]. Tais alterações, cumpridas as formalidades legais, estariam seguramente escoradas no princípio da autonomia privada coletiva, entre outros.

Enfim, neste breve ensaio, colocamo-nos a apresentar um alerta a empregadores para que se acautelem e reflitam sobre o tema, vindo a adotar inciativas que melhor se adequem à sua realidade operacional. O objetivo é o de reduzir a possibilidade de gerarem um indesejável passivo trabalhista, que, como visto, pode se apresentar por meio de condenações ao pagamento de horas extras e/ou diferenças salariais decorrentes de eventual decretação de nulidade dos pactos de redução de jornada e salário.

[1] MP 927, art. 4º: Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá, a seu critério, alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho.

[2] CLT, art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:

(...)

III - os empregados em regime de teletrabalho.

[3] MP 927, art. 4º:

(..)

§ 1º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância a prestação de serviços preponderante ou

totalmente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias da informação e comunicação que, por sua natureza, não configurem trabalho externo, aplicável o disposto no inciso III do caput do art. 62 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.

(...)

§ 5º O tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo.

[4] CLT, art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:

(...)

I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;

[5] TST, súmula 338 - JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I - É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário.

[6] CLT, art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. (Redação dada pela Lei nº 12.551, de 2011)

Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.

[7] CLT, art. 74. O horário de trabalho será anotado em registro de empregados.

(...)

§ 3º - Se o trabalho for executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará do registro manual, mecânico ou eletrônico em seu poder, sem prejuízo do que dispõe o caput deste artigo.

§ 4º Fica permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.

[8] CF, art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

[9] CLT, art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:

(...)

§ 3o Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo.

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