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GREVE DE PORTUÁRIOS - CORONAVÍRUS - 4ª PARTE


Portos de países fortemente atingidos pelo coronavírus, como a Espanha, se mantém firmes através do esforço conjunto de Trabalhadores, Empresários e Autoridades Públicas. No Brasil, mais especificamente em Santos, o setor portuário tem sido desafiado a refletir sobre alternativas que blindem a continuidade das operações contra algumas "ameaças"... Apesar de desgastantes, as discussões atuais têm revelado a importância de se modificar alguns paradigmas como, por exemplo, a "reserva de mercado dos TPAs".
Conforme será detalhado no final deste texto, o Tribunal de Justiça da União Europeia já julgou irregular o sistema espanhol de reserva de mercado que, similarmente ao que ocorre no Brasil, impedia a livre contratação de trabalhadores para o porto. Isso revela que a sistemática brasileira não está alinhada às melhores práticas mundiais em termos de relação capital-trabalho no Porto.
A restrição à livre contratação de empregados para o trabalho portuário, seja pelo sistema de “prioridade” ou de “exclusividade” (principalmente este), é inconstitucional. A existência de afronta à Livre Iniciativa dos Operadores Portuários é clara (art. 170 da Constituição Federal), pois as Empresas do setor portuário lidam com uma restrição que não atinge outros segmentos econômicos.
Há, também, uma afronta constitucional difusa à Liberdade de Profissão prevista no art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal. Qualquer cidadão pode ter acesso direto às profissões em geral: piloto de avião, policial militar, advogado, juiz, procurador, engenheiro, médico etc. Basta que sejam preenchidos requisitos específicos de capacidade técnica e civil, condição que é ressalvada pelo próprio dispositivo constitucional ao prever que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
No caso do trabalho portuário, porém, o preenchimento de tais condições não basta para que qualquer cidadão possa obter emprego numa das seis atividades previstas pelo art. 40 da Lei n. 12.815/2013. A qualificação técnica para exercer a profissão de trabalhador portuário pode, na atualidade, ser obtida em diversas instituições (Exemplos: SENAI, CENEP, INCATEP etc). A habilitação e o treinamento dos trabalhadores portuários vinculados podem ser proporcionados pelo empregador, Terminal ou Operador Portuário.
Mesmo que um cidadão ou cidadã realize tais cursos e esteja capacitado(a) civil e tecnicamente, o emprego no trabalho portuário não lhe estará diretamente acessível como acontece nas demais profissões. Em outras palavras, o trabalho portuário com vínculo empregatício acaba não sendo totalmente livre para todo(a)s! Apenas alguns milhares de trabalhadores inscritos nos OGMOs, em detrimento de milhões de brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, têm livre acesso às vagas de emprego nos Terminais e Operadores dos portos públicos (restrição não se aplica aos Terminais Privados, TUPs).
Assim como acontece com a Livre Iniciativa, a Liberdade de Profissão fica parcialmente afrontada pelo sistema de “prioridade” (que é o correto, conforme Convenção OIT n. 137 e Dissídio FENOP) e completamente esvaziada se a diretriz adotada for a da “exclusividade” dos TPAs inscritos nos OGMOs para as vagas de emprego. Há, também, inobservância ao Princípio Constitucional da Isonomia uma vez que os trabalhadores inscritos no OGMO podem buscar diretamente vagas de emprego no mercado comum, mas os trabalhadores em geral não têm esse mesmo acesso livre ao trabalho portuário. Em outras palavras, e exemplificativamente, um TPA pode disputar direta e livremente uma vaga de emprego no comércio com outro trabalhador do mercado comum, mas este último não tem a mesma garantia se quiser candidatar-se a um posto de portuário vinculado oferecido por Operador ou Terminal.
Essas inconstitucionalidades não foram observadas na elaboração da Lei n. 8.630/1993 (quando havia, é verdade, uma necessidade de transição social), e o legislador de 2013 acabou não corrigindo tal questão na Lei n. 12.815 (vinte anos depois, intervalo de tempo mais do que razoável/satisfatório em termos de transição social).
Urge frisar, especialmente após a decisão tomada pela SDI-1 do TST em 05/12/2019, que é ilícito e desarrazoado limitar radicalmente as contratações pela via da “exclusividade”. A aplicação desmedida desse sistema provocaria uma situação teratológica, pois deixaria ao arbítrio dos Trabalhadores a formação do quadro de Funcionários dos Operadores. Exemplo: e se os Trabalhadores do sistema OGMO não quisessem, numa determinada situação, se candidatar ou aceitar as vagas de emprego? O Operador Portuário teria que se submeter a exigências absurdas para “conquistar” o Trabalhador? Ou teria que paralisar (parcial ou totalmente) suas atividades? Ficaria compelido a contratar apenas Trabalhadores Avulsos? Quanto à última indagação reflexiva, deve-se destacar a prerrogativa prevista no próprio art. 40 da Lei n. 12.815/2013.
Repetindo texto que já existia no art. 26 da Lei n. 8.630/1993, o referido dispositivo da “Nova Lei dos Portos” preservou o direito de que os Operadores desenvolvam suas atividades total ou parcialmente com Vinculados, Empregados. Impor absolutamente a “exclusividade” significaria reduzir ou até mesmo eliminar tal direito. Cabe registrar que alguns defensores ferrenhos da primazia do Trabalho Avulso (avessos à vinculação) veem a Exclusividade como um dos instrumentos que podem bloquear a contratação por prazo indeterminado. Diáfano que uma barreira dessa espécie não se sustenta diante da Livre Iniciativa assegurada pela Constituição Federal (arts. 1º e 170). É pertinente lembrar, neste passo, o comando inserido no art. 122 do Código Civil: “São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes” (grifamos).
Considere-se acima de tudo que, dotada de caráter supralegal, a Convenção OIT n. 137 é um Tratado Internacional incorporado ao sistema jurídico brasileiro com status hierárquico superior à Lei n. 12.815/2013; ou seja, esta última é inválida em tudo o que confronte a Convenção. O fato de o Brasil não ter denunciado a referida Convenção - possibilidade conferida a todos os ratificantes - revela claramente que o sistema da “preferência” permanece intocável, sob pena de Inconvencionalidade. Neste sentido, o art. 31 da Lei n. 12.815/2013 destaca que “O disposto nesta Lei não prejudica a aplicação das demais normas referentes ao transporte marítimo, inclusive as decorrentes de convenções internacionais ratificadas, enquanto vincularem internacionalmente o País”. Diáfano que a Lei n. 12.815/2013 não pode contrariar (“não prejudica”) as disposições da Convenção OIT n. 137.
Em reunião nacional da CONATPA realizada no mês de julho/2016 o Ministério Público do Trabalho definiu que, mesmo com o advento da Lei n. 12.815/2013, sua posição institucional em defesa do sistema de Prioridade seria mantida. Ronaldo Curado Fleury, renomado especialista em Trabalho Portuário e que àquela altura ocupava a posição de Procurador-Geral do Trabalho, participou dessa reunião e destacou que “o melhor a se fazer é defender uma interpretação conforme de modo a defender a ‘preferência’, pois se defender apenas a exclusividade, o Supremo vai interpretar como inconstitucional a lei, então a ideia é trabalhar um meio termo” (pág. 7 da ata da reunião nacional). Das três diretrizes colocadas em votação prevaleceu maciçamente dentre os Procuradores a opção pelo sistema de Preferência (e não de exclusividade!) aos TPAs, com possibilidade subsidiária de contratação de Trabalhadores do mercado comum de trabalho.
O Reino da Espanha foi acusado, perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, de “obrigar sistematicamente as empresas estivadoras que operam nos portos de interesse geral espanhóis a participar numa Sociedad Anónima de Gestión de Estibadores Portuarios (Sociedade Anónima de Gestão de Estivadores Portuários) ou SAGEP e [...] não lhes permitir recorrer ao mercado para contratar o seu próprio pessoal, seja de forma permanente ou temporária, a menos que os trabalhadores propostos pela SAGEP não sejam idóneos ou sejam insuficientes”.
Em seu Acórdão o TJUP reconheceu que esse sistema espanhol afrontava a “Liberdade de Estabelecimento” (conceito similar à Livre Iniciativa na Constituição Federal do Brasil), decretando como ilícito o ato de “impor às empresas de outros Estados‑Membros que pretendem exercer a atividade de manutenção de mercadorias nos portos espanhóis de interesse geral, quer a obrigação de inscrição numa sociedade anónima de gestão de estivadores portuários («Sociedad Anónima de Gestión de Estibadores Portuarios») bem como, no presente caso, a participação no capital desta, quer a contratação, com caráter prioritário, de trabalhadores disponibilizados por essa sociedade, dos quais um número mínimo de forma permanente”. Assim como na Espanha, a sistemática de reserva de mercado no trabalho portuário brasileiro também se revela insustentável no presente; esgotou-se e é um desserviço ao desenvolvimento do setor.
LUCAS RÊNIO DA SILVA. Advogado, Sócio da Advocacia Ruy de Mello Miller com atuação especializada na área Trabalhista Sindical, Coletiva e Portuária. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela USP (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo São Francisco). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Coautor do Livro “Direito Portuário - Regulação e Trabalho na Lei n. 12.815/13”. Professor convidado nos Cursos sobre Trabalho Portuário da Escola Superior do Ministério Público da União, na Especialização em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Católica de Santos - Unisantos e no Curso de Regulação Portuária Trabalhista da ESA-Santos. Autor de artigos publicados internacionalmente na Revista Cargo de Portugal e na Revista “MundoMaritimo” do Chile. Lattes: ‹http://lattes.cnpq.br/4844643246793981›. LinkedIn: ‹https://www.linkedin.com/in/lucasrenio/›.
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Esse artigo integra uma sequência de publicações. Confira os artigos complementares nos links abaixo.
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