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A Provisão das Empresas após a MP 905/19: Solução ou Ilusão?


Com a recente edição da Medida Provisória nº 905/19, o Poder Executivo alterou inúmeros pontos da legislação trabalhista, entre os quais aqueles referentes à incidência de correção monetária e juros de mora sobre os débitos reconhecidos em juízo.

Por força da Medida, os artigos 879, §7º, e 883 da CLT passaram a vigorar com a seguinte redação:

Art. 879 (...)

§ 7º A atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial será feita pela variação do IPCA-E, ou por índice que venha substituí-lo, calculado pelo IBGE, que deverá ser aplicado de forma uniforme por todo o prazo decorrido entre a condenação e o cumprimento da sentença.

Art. 883. Não pagando o executado, nem garantindo a execução, seguir-se-á penhora dos bens, tantos quantos bastem ao pagamento da importância da condenação, acrescida de custas e juros de mora equivalentes aos aplicados à caderneta de poupança, sendo estes, em qualquer caso, devidos somente a partir da data em que for ajuizada a reclamação inicial.

O artigo 39 da Lei nº 8.177/91 e seu §1º também foram objeto de modificação:

Art. 39. Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador ou pelo empregado, nos termos previstos em lei, convenção ou acordo coletivo, sentença normativa ou cláusula contratual, sofrerão juros de mora equivalentes ao índice aplicado à caderneta de poupança, no período compreendido entre o mês subsequente ao vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento.

§ 1º Aos débitos trabalhistas constantes de condenação pela Justiça do Trabalho ou decorrentes dos acordos celebrados em ação trabalhista não pagos nas condições homologadas ou constantes do termo de conciliação serão acrescidos de juros de mora equivalentes ao índice aplicado à caderneta de poupança, a partir da data do ajuizamento da reclamatória e aplicados pro rata die, ainda que não explicitados na sentença ou no termo de conciliação.

Em princípio, tais alterações representam uma sensível redução dos passivos trabalhistas existentes e potenciais.

Inúmeras empresas já vislumbram a possibilidade de projetar esse “corte” em seus provisionamentos, destravando, assim, valores antes reservados para cobrir perdas judiciais classificadas como “prováveis”. O montante poderia, por via de consequência, ser direcionado para investimentos, distribuição de dividendos ou qualquer outra finalidade.

Aos que nos questionam a respeito, temos uma única orientação: calma!

Diversos aspectos nos impedem de referendar um ajuste tão radical e abrupto na provisão de perdas judiciais. Podemos citar desde a precariedade da Medida até a possibilidade de os Tribunais empregarem interpretações controvertidas sobre o seu alcance e aplicabilidade no curso das ações.

Passemos, então, a discorrer sobre alguns desses pontos.

a) Caráter precário

Primeiramente, há que se mencionar o caráter precário da MP 905/19.

Ainda que constitua um instrumento com força de lei, sua conversão definitiva depende da aprovação do Congresso Nacional. Caso contrário, haverá perda de eficácia após 60 dias contados de sua publicação, prorrogáveis por igual período.

Vale lembrar que a rejeição tácita ou expressa da Medida gera efeito ex tunc, isto é, retrocede ao momento de edição (artigo 62, §3º, da CF), o que poderá acarretar a necessidade do aumento abrupto da provisão porventura reduzida.

b) Aparente inconstitucionalidade

Em seu curto tempo de existência, já foram publicadas decisões judiciais em que vigora o posicionamento de que a MP 905/19 é inconstitucional, seja em razão de uma possível infringência à vedação ao trato dos temas elencados no §1º do artigo 62 da CF, seja em razão da falta de urgência que justifique sua edição, consoante exige o caput do mesmo artigo.

Corroborando o exposto, compartilhamos trecho de sentença recentemente proferida pela 5ª Vara do Trabalho de Campinas/SP (TRT 15ª Região - proc. nº 0012231-42.2017.5.15.0092 – publicada em 22/11/2019):

Registro que os artigos 28 e 47 da MP 905/2019, no que tangem às alterações, respectivamente, dos artigos 883 da CLT e 39 da Lei 8.177/91, revelam-se inconstitucional pelas seguintes razões: (i) o artigo 62, § 1º, I, da Constituição veda a edição de medida provisória sobre direito processual civil, sendo certo que a fixação de juros é matéria de natureza híbrida (substancial e processual); (ii) não há urgência que justifique a regulamentação de tal matéria por medida provisória; (iii) a adoção de juros da poupança - que tende a ser bem menor os índices estabelecidos na legislação civil, tributária e em outras searas - viola do caráter privilegiado do crédito trabalhista consagrado constitucionalmente; (iv) ao estabelecer índices de juros irrisórios sobre débitos trabalhistas, a norma em análise acaba por incentivar os devedores trabalhistas a protelarem o pagamento, violando, com isso, também, os princípios constitucionais da razoável duração do processo e do devido processo legal; (v) ao estabelecer que a correção monetária incide apenas a partir da sentença, a nova redação do artigo 39 da Lei 8.177/91 contraria a ratio decidendi firmada pelo STF na decisão proferida no RE 870947, em que se reconheceu com repercussão geral a inconstitucionalidade da adoção da TR por não proporcionar a recomposição patrimonial do credor, ante o desrespeito ao direito de propriedade e do devido processo legal. Destarte, declaro incidentalmente a inconstitucionalidade das normas prescritas nos artigos 28 (no que tange a modificação do artigo 883 da CLT) e 47 da MP 905/2019, razão pela qual as reputo ineficazes, de sorte que os juros e a correção monetária deverão ser apurados à luz do disposto no parágrafo anterior desta sentença, tendo como base nos textos do artigo 39 da Lei 8.177/91 e 883 da CLT, anteriores à MP 905, ou seja, juros de 1% ao mês desde o ajuizamento, por rata die, incidente sobre o débito atualizado pelo IPCA-E desde o vencimento da obrigação (ressalvada a súmula 439 do TST).

Há quem defenda, ainda, que a vinculação dos juros de mora ao índice equivalente à caderneta de poupança implicará uma assimetria entre os créditos trabalhistas e aqueles de outra natureza, justamente o que se visou equalizar por meio da edição da MP 905/19.

Não resta dúvida de que a fixação de juros a 1% ao mês representa, em si, um indesejável excesso. Entretanto, o critério eleito acabou por tornar os juros trabalhistas inferiores, por exemplo, àqueles recebidos por credores civis, embora o crédito trabalhista seja privilegiado dada a sua natureza alimentar.

c) Vazio legal

Desde antes da edição da MP 905/19, perdura junto à Justiça do Trabalho incômoda controvérsia acerca do índice de correção monetária aplicável aos débitos trabalhistas, principalmente em razão da decisão proferida pelo Tribunal Pleno do TST no Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade nº 0000479-60.2011.5.04.0231; controvérsia, esta, que ganhou sobrevida com a edição da Lei nº 13.467/17.

No referido julgamento se concluiu pela inconstitucionalidade da expressão “equivalente a TRD” constante na redação do artigo 39 da Lei nº 8.177/91 - hoje, alterada pela MP 905/19 -, que traça as diretrizes para a correção monetária dos débitos trabalhistas. Ante o chamado “vazio legal”, fixou-se um critério judicial para atualização desses créditos, traduzido na aplicação do índice IPCA-E. Ocorre que a Lei nº 13.467/17, posterior à decisão, acresceu o §7º ao artigo 879 da CLT – com redação também alterada pela MP 905/19 -, reafirmando a TR como índice a ser observado.

A discussão sobre a constitucionalidade da alteração, e até mesmo da decisão do TST, é intensa e aguarda solução junto ao STF, mas não importa ao presente estudo, senão para contextualizar o nosso alerta.

Considerada apenas a literalidade da alteração imposta ao §7º do artigo 879 da CLT pela MP 905/19, emerge uma lacuna legal no que se refere à correção monetária dos débitos pelo período anterior à condenação. Tem-se, contudo, que a controvérsia surgida com a declaração de "inconstitucionalidade da TR" gravita, justamente, em torno do argumento de que o referido índice não garante a recomposição patrimonial em favor do credor, situação que se agravará se, anteriormente à decisão condenatória, não houver qualquer atualização.

Cite-se, novamente, que a adoção do IPCA-E pelo Tribunal Pleno do TST, seguindo os mesmos passos trilhados pelo STF em julgamento relacionado ao pagamento de precatórios, objetivou preencher o já alardeado vazio legal surgido com a declaração de inconstitucionalidade da expressão "equivalente à TRD", vazio este que perduraria em face dos débitos reconhecidos em juízo quanto ao período anterior à condenação se adotados os parâmetros estabelecidos pela MP 905/19.

Não acreditamos que a Jurisprudência do TST caminhará em sentido diverso, ou seja, que deixará de reconhecer a correção monetária a partir do vencimento da obrigação e com incidência do IPCA-E a partir de 25/03/2015 (efeito modulatório aplicado ao julgamento do incidente ArgInc-0000479-60.2011.5.04.0231), salvo decisão em contrário que possa vir a ser proferida pelo STF, o que também se mostra improvável.

d) Incongruência

Outro ponto que nos causa desconforto se refere ao aparente choque criado pela nova redação empregada ao artigo 39 da Lei 8.177/91 e seu §1º.

O caput do dispositivo determina que os débitos trabalhistas sofrerão juros de mora equivalentes ao índice aplicado à caderneta de poupança desde o mês subsequente ao vencimento da obrigação, enquanto o seu parágrafo 1º estabelece que, no caso de condenação pela Justiça do Trabalho, esses mesmos juros incidirão a partir da data de ajuizamento da reclamação trabalhista. A redação dada ao artigo 883 da CLT segue essa segunda diretriz.

Ora, como será equalizada essa incongruência?

Não há como se sustentar que o débito pago extrajudicialmente, porém de forma extemporânea, tenha marco inicial de incidência de juros mais gravoso do que o débito quitado judicialmente; em outras palavras, que o trabalhador terá sua situação agravada pelo simples ingresso da ação judicial. De igual forma, é indefensável a ideia de que haverá dupla incidência de juros (juros "extrajudiciais" e juros "judiciais").

Surge, assim, um enorme ponto de interrogação sobre a interpretação que se dará à alteração em mais este aspecto.

e) Aplicação temporal

Ainda que venha a ser referendada pelo Congresso Nacional, há dúvida a respeito da aplicação temporal das alterações promovidas pela MP 905/19, isto é, se haverá incidência imediata sobre as ações em curso anteriormente à sua publicação.

A solução da questão passa, necessariamente, pela definição da natureza jurídica dos institutos.

Costuma-se defender que a correção monetária, por representar regra que objetiva preservar o

patrimônio do credor, possui natureza processual. A alteração legislativa, portanto, teria incidência imediata, a exemplo de precedente do próprio STF (AgRg-AgRg-RE-217561, Rel. Ministro Eros Grau, publicado em 29/10/2009):

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CDB. CLÁUSULA DE CORREÇÃO MONETÁRIA PÓS-FIXADA. As normas que alteram o padrão monetário e estabelecem critérios para a conversão dos valores em face dessa alteração aplicam-se de imediato, por serem consideradas leis de natureza estatutária. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.

Quanto aos juros de mora, sustenta-se que sua natureza é material (ou ao menos híbrida), já que ostentam característica de remuneração autônoma do credor destinada a indenizá-lo pelo retardamento no pagamento da dívida principal. Esse segundo fator, em tese, limitaria a aplicação da novidade legislativa.

Considerando que o fato gerador dos juros moratórios se renova periodicamente, mostra-se defensável que os novos índices passem a vigorar a partir da alteração legislativa, mas não que retroajam ao momento da propositura da ação nos processos distribuídos anteriormente à Medida. Assim, para o período anterior à MP os juros seriam computados a 1% e a partir de sua publicação prevaleceria o índice equivalente à caderneta de poupança – isso se ignoradas as questões tratadas nos demais tópicos.

Por seguir idêntica linha de raciocínio, transcrevemos a seguir recente julgado do TJ de SP (TJ-SP – Agravo Interno AGT 2074536-21.2018.8.26.0000 – publicado em 08/02/2019):

Agravo Interno – Agravo de Instrumento – Ação de reparação de danos materiais e morais decorrentes de acidente de trânsito – Cumprimento de sentença – Homologação do cálculo do contador judicial – Alteração no percentual dos juros moratórios a partir da entrada em vigor do novo Código Civil (...) Os juros moratórios são matéria de ordem pública. Portanto, incidirão juros moratórios desde a citação, à alíquota de 0,5% (meio por cento) ao mês até a vigência do Novo Código Civil, quando passarão à alíquota de 1% (um por cento) ao mês – No caso ora sob exame, ver o que foi decidido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em recurso repetitivo (art. 543-C do CPC), de aplicar-se o seguinte entendimento: “EXECUÇÃO DE SENTENÇA. TAXA DE JUROS. NOVO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO À COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA, ART. 406 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. TAXA SELIC. 1. Não há violação à coisa julgada e à norma do art. 406 do novo Código Civil, quando o título judicial exequendo, exarado em momento anterior ao CC/2002, fixa os juros de mora em 0,5% ao mês e, na execução do julgado, determina-se a incidência de juros previstos nos termos da lei nova.

Como se vê, é difícil prevermos qual posicionamento prevalecerá junto à jurisprudência. Aliás, é com pesar que recordamos que a Justiça do Trabalho tem se destacado negativamente no quesito “previsibilidade”.

f) Coisa julgada

Aproveitando o gancho da jurisprudência compartilhada no tópico anterior, temos que a coisa julgada também poderá acarretar desdobramentos no que se refere ao tema.

Conforme mencionado naquele julgado, vigora junto ao STJ o entendimento de que, no tocante aos juros moratórios, a prevalência de regras estabelecidas através de alteração legislativa no curso do processo não implica ofensa à coisa julgada. Nas palavras do Ministro Mauro Campbell Marques, “A pretensão de recebimento de juros moratórios renova-se mês a mês, tendo em vista que se trata de efeitos futuros continuados de ato pretérito (coisa julgada) (...) Trata-se de um corolário do princípio da aplicação geral e imediata das leis” (Resp 594.486 / 1.112.746 / 1.111.117).

O posicionamento parece-nos aplicável à esfera trabalhista. Cabe-nos ressalvar, entretanto, hipótese em que a coisa julgada serviria de impedimento à aplicação da nova regra, ainda que venha a ser convalidada pelo Congresso Nacional.

Caso a decisão condenatória seja POSTERIOR à edição da MP 905/19, mas estabeleça expressamente índice de juros diverso e a determinação venha a transitar em julgado, deverá prevalecer a literalidade do comando sentencial.

Podemos citar como exemplo uma hipotética declaração de inconstitucionalidade da MP 905/19 ou decisão que reconheça a impossibilidade de aplicação imediata de seus termos. Nesses casos, formando-se a coisa julgada, entendemos pela prevalência incondicional das regras fixadas no título judicial.

CONCLUSÃO

Em hipótese alguma defendemos que o debate não deva ser fomentado junto ao Poder Judiciário. No entanto, por meio deste breve estudo, acreditamos que foi possível demonstrarmos as incertezas que cercam o tema e, consequentemente, o risco que as empresas enfrentarão se decidirem promover uma alteração tão profunda em suas provisões neste momento.

O aconselhável é que a aplicação do novo regramento seja discutida caso a caso e somente após a consolidação do cenário legislativo e judicial passe a impactar provisionamentos e projeções orçamentárias.

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