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Crédito marítimo privilegiado

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu o direito de seqüela do crédito marítimo privilegiado nas hipóteses de alienação judicial de embarcações. Trata-se de relevante e inédita decisão em favor de credores nacionais, que teve a seguinte ementa:

DIREITO MARÍTIMO. BEM MÓVEL. COBRANÇA. DESPESAS DE MANUTENÇÃO DE EMBARCAÇÃO CRÉDITO PRIVILEGIADO. Se a Convenção Internacional de Bruxelas expressamente prevê que os créditos privilegiados acompanham o navio seja qual for o seu possuidor, o débito dele decorrente pode ser cobrado do seu atual proprietário. Sentença mantida. Recurso improvido. (Apelação com Revisão n. 991.190-0/2, Rel. Des. Felipe Ferreira)

A discussão tem origem no Código Comercial Brasileiro, que estabelece, nas vendas voluntárias de embarcações, a hipoteca tácita de determinados créditos, a saber: salários devidos por serviços prestados, direitos de porto e impostos de navegação, despesas do custeio do navio e seus pertences, faltas na entrega da carga, prêmios de seguro, entre outros elencados nos artigos 470 e 471 do CCom.

Necessário pequeno parênteses para lembrar que a redação do Código Comercial remonta a 1850 (!), fazendo-se necessária uma adaptação e interpretação dos termos e conceitos então utilizados. Também por esta razão, entendemos desnecessárias as formalidades exigidas no artigo 472 do CCom, haja vista a dinâmica do comércio atual e as facilidades propiciadas pela informática.

A hipoteca tácita – direito real constituído em favor do credor como garantia de dívida – dos créditos marítimos é autorizada pelo CCom, pois o navio, bem móvel, é equiparado para certas finalidades ao bem imóvel. Conveniente também esclarecer que o direito de seqüela é aquele que tem o titular de um direito real de apreender o que lhe pertence e tirá-lo do poder daquele que o detém.

Pois bem. Os créditos marítimos privilegiados gozam em nossa legislação do direito de seqüela, isto é, o credor pode solicitar o arresto de uma embarcação para satisfação e garantia de seu crédito: Enquanto durar a responsabilidade de embarcação por obrigações privilegiadas, pode esta ser embargada e detida, a requerimento de credores que apresentarem títulos legais. (art. 479, CCom)

Na venda voluntária de embarcação o direito de seqüela é indiscutível, pois existe expressa disposição no Código Comercial Brasileiro (vide artigo 470, caput).

A controvérsia reside na venda judicial de embarcações. Isto porque nosso Código Comercial estabelece que nestas extingue-se toda a responsabilidade da embarcação para com todos e quaisquer credores.

É verdade que, se os créditos estiverem registrados, o preço da arrematação será conservado em depósito, durante três anos. Ocorre, no entanto, que a dinâmica e prática do comércio não é esta, o que torna o dispositivo anacrônico.

Para ilustrar e melhor contextualizar a questão, releva dizer que o julgado acima citado trata do arresto de um navio no Porto de Santos, por dívidas contraídas para o custeio desse navio em outra viagem ao Porto de Vitória; navio este pertencente a terceiro Armador, fruto de uma arrematação em hasta pública (venda judicial) na República Popular do Togo, que havia trocado de nome.

A Convenção de Bruxelas sobre Privilégios e Hipotecas Marítimas, de 10 de abril de 1926, ratificada pelo Brasil em 23.12.1930 pelo Decreto n. 1.126 de 29.9.1936, estabelece em seu artigo oitavo: Os créditos privilegiados acompanham o navio seja qual for o seu possuidor.

A Convenção, como se vê de sua redação, não estabelece diferença entre a forma de aquisição, como o faz o nosso Código Comercial. E esta a lacuna que foi objeto da apreciação do Poder Judiciário.

Na sentença, proferida no Juízo de origem, o fundamento invocado foi a obrigação real (propter rem), que se caracteriza por sua vinculação à coisa, no caso, a embarcação. Esta obrigação está vinculada a um direito real (hipoteca), que acompanha a coisa, vinculando o dono, seja ele quem for.

No Tribunal, a decisão proferida foi além e reconheceu a prevalência da Convenção internacional, ratificada pelo Brasil, sobre as disposições do Código Comercial brasileiro. Interessante observar e registrar, também, que não obstante tenha se reconhecido a prevalência da Convenção, foi consignado que a venda judicial realizada não respeitou uma exigência da legislação brasileira, qual seja , a ampla publicidade.

Não sem motivo esta ressalva da decisão pretoriana. Isto porque não raras às vezes os armadores de navios – e aqui estamos tratando dos armadores tramps – se utilizam de tortuosos expedientes societários, com a ocultação dos verdadeiros proprietários, e de vendas simuladas para deixar de honrar seus compromissos comerciais.

A importância da decisão neste comentada se deve principalmente ao seu ineditismo. Em que pese nosso Código remontar aos idos de 1850 e a Convenção de Bruxelas ter sido ratificada pelo Brasil em 1930, não há nos repertórios oficiais de jurisprudência nenhuma decisão sobre o tema.

Thiago T. M. Miller, advogado, sócio da Advocacia Ruy de Mello Miller, especializada em Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro. www.miller.adv.br

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